Intervenção do Estado na propriedade privada: a supremacia dos interesses públicos primários como medida de justiça social

Mario Rodrigues de Lima é Advogado especializado em Direito Processual Civil e autor de diversos artigos jurídicos em sites e publicações periódicas. Atua no apoio a todos os Departamentos da Oliveira Campanini Advogados Associados.

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É certo que o interesse público deve sempre ser buscado pela Administração, mas em caso de conflito entre interesses público e particular, o administrador deverá ter o máximo de cautela no momento de proceder a ponderação de tais interesses.

Conforme leciona a Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988, a propriedade particular (via de regra) é algo inviolável, sendo certo que a lei sempre terá previsões no sentido de tutelar as garantias necessárias à tais bens.

Isso significa que todos os bens que somam o patrimônio de um agente particular não poderão ser tomados ou de qualquer forma lesados por outrem ou pelo Estado.

É claro que tal disposição é a exteriorização da proteção que os próprios proprietários costumam zelar à seus pertences, afinal de contas, todo nosso patrimônio é por nós guardado e defendido, para que ninguém os tome injustamente.

Todos os nossos bens, sejam os mais importantes, ou até mesmo aqueles mais fúteis, merecem ser protegidos, afinal de contas, os mesmos custaram algum valor econômico para serem adquiridos.

Não se pode ainda esquecer que muitos desses bens possuem o inestimável valor afetivo, e que geralmente, estas situações fazem com que o objeto não seja negociado nem mesmo mediante uma oferta astronômica, muito acima do valor real de mercado.

Diante disso, podemos concluir que a Constituição foi enfática ao garantir aos cidadãos que seu patrimônio será zelado, num verdadeiro reconhecimento do esforço que muitas vezes precisamos fazer para conseguirmos somar algo à nossas vidas, além de caracterizar o amparo necessário ao valor emotivo que temos naquilo que conseguimos obter.

Neste esteio, vejamos o que dispõe o artigo 5º de nossa carta magna:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XXII – é garantido o direito de propriedade;

Há de salientar o fato de que o artigo 5º da Constituição Federal trata exatamente dos direitos e garantias individuais, e que estando a propriedade privada inserida no bojo deste artigo, significa que a proteção conferida ao particular é tida como uma clausula pétrea, e portanto, jamais poderá ser revogada ou diminuída.

Ocorre que existem hipóteses legais que ensejam a justa intervenção de terceiro no domínio da propriedade.

Dentre as hipóteses de que um outro particular intervenha na relação entre proprietário e objeto, um caso muito simples de se entender (e bastante comum) é a adjudicação de bens pelo credor à fim de satisfazer o crédito inadimplente do devedor.

Nota-se que isso não ocorre automaticamente, e que o patrimônio do devedor não foi violado de oficio ou ao mero deleite do credor, afinal de contas o devedor deteve opções de pagamento espontâneo, a nomeação de bens à serem leiloados, a celebração de uma conciliação, etc. Porém, o devedor quedou-se inerte na condição de inadimplente, e só então a lei enseja que o credor detenha qualquer intervenção na propriedade alheia. Aliás, isso é notadamente uma medida de justiça, já que caso contrário a lei beneficiaria o devedor ao invés de incentivar o cumprimento (ainda que forçado) da obrigação.

Em um cenário que envolva um ente federativo, e portanto uma Pessoa Jurídica de Direito Público, o cenário se altera, e nem sempre as hipóteses de intervenção na propriedade privada se dão por culpa do agente particular.

Aliás, veremos que em muitos casos o particular não possui nenhuma inadimplência e mesmo assim o Estado poderá intervir na sua propriedade, e nada caberá ao particular além de discutir os valores de ressarcimento.

Isso ocorre pela chamada Supremacia dos interesses do Estado, a qual é caracterizada como uma condição de beneficio àquilo que o Estado pretende realizar, sempre que houver um confronto de interesses entre Estado e agente particular.

Em suma, quando o Estado estiver disposto à adotar um Ato Administrativo, e tal vontade se choca com o interesse de um particular, o Estado sempre se beneficiará de condição de supremacia, sendo certo então que seu interesse irá se sobrepor em relação ao interesse do agente privado.

Isso ocorre porque via de regra, o Estado atua defendendo os interesses coletivos, ou seja, atua visando obter melhorias para a maioria, para a população em geral.

Assim, não seria justo que uma minoria inviabilizasse o êxito de uma parcela muito maior de cidadãos.

Por isso a lei garante ao Estado esta condição de supremacia. Indiscutivelmente, se trata de um mal necessário à um particular, mas que garante um bem maior à uma quantidade muito maior de cidadãos, e assim, considerando que a maioria será beneficiada, se trata de uma condição que impõe a justiça, até mesmo porque inexiste prejuízo ao proprietário, já que este sempre será ressarcido em valores de mercado quanto ao bem perdido.

O conceito de interesse público é muito amplo, por isso constitui matéria de extrema dificuldade entre os doutrinadores. Ainda não se conseguiu definir ao certo o que seria interesse público, caracterizando, desse modo, um conceito indeterminado. Os significados variam, pois há aqueles que entendem que é um interesse contraposto ao interesse individual, outros defendem que é a somatória de interesses individuais, passando pela soma de bens e serviços, bem como, o conjunto de necessidades humanas indispensáveis na vida do particular.

Como bem disse Celso Antônio Bandeira de Mello:

“Ao se pensar em interesse público, pensa-se, habitualmente, em uma categoria contraposta à de interesse privado, individual, isto é, ao interesse pessoal de cada um. Acerta-se em dizer que se constitui no interesse do todo, ou seja, do próprio conjunto social, assim como acerta-se também em sublinhar que não se confunde com a somatória dos interesses individuais, peculiares de cada qual. Dizer isto, entretanto, é dizer muito pouco para compreender-se verdadeiramente o que é interesse público” [1]

Maria Sylvia Zanella Di Pietro, ao tratar de interesse público, dispõe o seguinte:

“As normas de direito público, embora protejam reflexamente o interesse individual, tem o objetivo primordial de atender ao interesse público, ao bem-estar coletivo. Além disso, pode-se dizer que o direito público somente começou a se desenvolver quando, depois de superados o primado do Direito Civil (que durou muitos séculos) e o individualismo que tomou conta dos vários setores da ciência, inclusive a do Direito, substituiu-se a ideia do homem com fim único do direito (própria do individualismo) pelo princípio que hoje serve de fundamento para todo o direito público e que vincula a Administração em todas as suas decisões: o de que os interesses públicos tem supremacia sobre os individuais.” [2]

O pilar do Direito Administrativo está entre a legalidade e a supremacia do interesse público e são esses princípios que estabelecem as prerrogativas, privilégios e autorização para a Administração Pública.

Importa registrar que o princípio da legalidade tem que ser usado junto com o princípio da supremacia do interesse público, uma vez que a Administração tem a obrigação de praticar atos que atenda a sociedade como um todo e estes atos têm que ser convenientes para esta sociedade.

Desse modo, quando a Administração Pública atende o interesse público ao invés do interesse particular, com base no princípio da legalidade, este ato administrativo deduz vantagens que compensam o sacrifício privado, tendo em vista que este sujeito vai gozar de um benefício maior.

Para Cláudia Mara de Almeida Rabelo Viegas:

Salienta-se que, quando o particular age, ele o faz na defesa do seu interesse pessoal, o qual é tutelado pelo Direito. Por outro lado, quando a Administração age, ela o faz em nome de toda a sociedade. Assim, no choque entre o interesse privado e o interesse público, deve prevalecer o interesse que a Administração defende, mas isto tem que estar definido em lei. Vale acrescentar que esse princípio fundamenta toda a utilização de poderes e prerrogativas públicas. [3]

É certo que, quando houver conflito entre o interesse coletivo e o interesse individual, o administrador deve buscar atender aos anseios da coletividade, caso contrário, haveria um desvio de finalidade, tornando, desse modo, o ato nulo. Contudo, fazer com que o interesse público prevaleça em todas as situações significa colocar em risco os direitos fundamentais do homem. Dessa forma, a Administração deve ter muita cautela porque, ao mesmo tempo, que a Constituição da República lhe outorgou prerrogativas a fim de atingir o interesse público, a nossa Carta Magna também garantiu aos cidadãos a garantia de observância de seus direitos fundamentais contra o abuso de poder.

Uma importantíssima ressalva à se fazer é de que nem todos os interesses da Administração Pública são dotados de supremacia, pois isso se dará apenas em hipóteses onde o Estado atuar objetivando realizar os interesses da coletividade, e não interesses da própria Administração Pública.

Essa diferença entre atuação do Estado em interesse próprio e interesses da população recebe o nome de interesses primários e secundários.

No caso, os interesses primários são dotados de supremacia já que são exatamente aqueles onde a maioria deverá se beneficiar, enquanto os secundários são aqueles onde apenas a Administração Pública seria beneficiada, e assim, a norma jurídica não permite que uma propriedade privada seja lesada, já que deverão prevalecer as tutelas constitucionais acerca da propriedade.

O sempre ilustre Celso Antônio Bandeira de Mello leciona:

“O Estado, concebido que é para a realização de interesses públicos (situação, pois, inteiramente diversa da dos particulares), só poderá defender seus próprios interesses privados quando, sobre não se chocarem com os interesses públicos propriamente ditos, coincidam com a realização deles”.[4]

O interesse público primário é a razão de ser do Estado e sintetiza-se nos fins que cabe a ele promover: justiça, segurança e bem-estar social. Estes são os interesses de toda a sociedade.

O interesse público secundário é o da pessoa jurídica de direito público que seja parte em uma determinada relação jurídica – quer se trate da União, do Estado-membro, do Município ou das suas autarquias.

Em ampla medida, pode ser identificado como o interesse do erário, que é o de maximizar a arrecadação e minimizar as despesas.

Naturalmente, em nenhuma hipótese será legítimo sacrificar o interesse público primário com o objetivo de satisfazer o secundário.

Diante de tudo o que foi exposto, denota-se que de fato, os particulares estão altamente tutelados pela Constituição Federal em relação à proteção de suas propriedades, e que as únicas hipóteses legais que ensejam a interferência de particulares ou do Estado na tomada de seus bens não possuem qualquer ilegalidade, imoralidade ou injustiça.

A propriedade privada será lesada apenas nos casos onde o devedor dê justo motivo, ou quando houver um confronto de interesses entre o agente particular e os anseios de uma coletividade.

Em ambos os casos, acertou o legislador ao beneficiar a maioria (dotando de supremacia os atos administrativos primários), bem como ao beneficiar o adimplemento da divida em face ao credor, colocando-o em situação beneficiada em relação à bens do devedor, exatamente por objetivar o cumprimento obrigacional.

Importa aqui salientar que são estendidas à Administração Pública certas prerrogativas, mas também limites no que tange à observância do interesse público. É certo que o interesse público deve sempre ser buscado pela Administração, mas em caso de conflito entre interesses público e particular, o administrador deverá ter o máximo de cautela no momento de proceder a ponderação de tais interesses, tendo em vista que a atual Constituição é farta de direitos e garantias individuais, não podendo, serem sacrificados quando vier à tona o interesse público.

Com isto não pretendemos, jamais, desconsiderar ou desconstruir a supremacia do interesse público. A nossa idéia no caso em tela é demonstrar que a aplicação do interesse público não pode ser absoluta, pois há administradores, bem ou mau intencionados, que alegam a supremacia desse interesse, que é publico, para atingir interesses pessoais ou objetivos que nem sempre atendem ao número de pessoas que deveria atender.

Ademais, embora os atos administrativos gozem de presunção de legitimidade, não quer dizer que, pelo simples fato desse ato ser concebido pelo administrador, ele atenderá ao interesse público. Isto porque, nem todas as vezes, a Administração age em conformidade com a finalidade pública e, consequentemente, não a obedecendo, incorre em desvio de função pública, bem como, o desatendimento ao interesse público.

Sendo assim, vale frisar que o interesse individual também deve ser observado pelo administrador e seguir caminho diverso pode resultar em um grande problema, uma vez que muitos interesses particulares podem ser massacrados, ofendendo inclusive a dignidade humana desse cidadão, preceito este muito bem resguardado pela Constituição Federal de 1988.

Ora, uma sociedade democrática e harmônica deve sempre buscar o bem comum, todavia, da mesma forma que a Administração Pública promove o bem-estar da coletividade, ela também deve preservar os direitos do particular fazendo, destarte, a ponderação dos princípios que versem conflitos de interesses.

Nessa linha de raciocínio, defendemos que, para um direito fundamental individual ser restringido em favor de um interesse coletivo, este ato deve estar pautado em um valor consagrado na nossa Constituição e que, naquela determinada situação, observando os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, foi preciso que um interesse coletivo restringisse um direito individual.

Notas

[1] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 19º edição. Editora Malheiros. São Paulo, 2005, pag. 59.

[2] PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito Administrativo. 19ª edição. Editora Atlas. São Paulo, 2006, pag. 69.

[3] VIEGAS, Cláudia M. R. “O princípio da supremacia do interesse público: Uma visão crítica da sua devida conformação e aplicação”. Disponível em <http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9092&revista_caderno=4#_ftnref12.> Acesso: 16 de dezembro de 2015.

[4] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 19º edição. Editora Malheiros. São Paulo, 2005, pag. 66.

 

 

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