Por dentro do “Caso Carandiru”. Análise das práticas de necropolítica no Estado de São Paulo. Estudo do autoritarismo líquido e das práticas de exceção como forma de política criminal.

Por: João Carlos Campanini

No último dia 02 de outubro do ano que escrevi este artigo (2022), o episódio da invasão pela Polícia Militar paulista do Complexo Penitenciário do Carandiru completou 30 anos.

Conhecida internacionalmente como “Massacre do Carandiru”, a ação ocorreu após autorização do Governo do Estado e de sua Secretaria de Segurança para que policiais militares adentrassem à então Casa de Detenção de São Paulo para conter uma rebelião e acabassem ferindo de morte cento e onze presos. Naquela época, os crimes dolosos contra a vida de civis cometidos por militares eram integralmente analisados e julgados pela Justiça Militar; porém, durante a instrução do feito, chegou-se à segura conclusão do envolvimento de civis na ação (os políticos da época), ocasião em que o processo foi encaminhado à Justiça Comum pela incompetência do foro castrense paulista para julgar não militares.

Em que pese a sabida autorização (ordem) dos agentes políticos para a invasão da PM naquele estabelecimento correcional, uma vez que é da doutrina policial militar atuar somente sob ordem. acabou “estourando a corda” como sempre pelo lado mais fraco. Somente os policiais militares foram denunciados e condenados pelos homicídios[1]. O Governador e seu Secretário de Segurança Pública, ambos oriundos do Ministério Público, foram, por seus antigos pares de Promotoria, “esquecidos no processo”, sendo apenas arrolados como testemunhas pela defesa dos PMs acusados.

A utilização de ações policiais por candidatos a cargos políticos eletivos não foi diferente em relação ao Coronel de Polícia Militar responsável pelo comando da tropa de choque que adentrou à Casa de Detenção naquele fatídico dia. Ubiratan Guimarães lançou-se candidato ao legislativo estadual paulista após os fatos, usando o número 14111, legenda que muitos sustentaram ser em referência aos cento e onze mortos na ação, embora o candidato sempre tenha sustentado que o número 111 era, na verdade, referência ao número de um cavalo do Regimento de Polícia Montada de sua PM que o tinha servido em provas de equitação quando sagrou-se vitorioso em competições. Ubiratan venceu as eleições como o candidato ao parlamento paulista e foi um dos criadores da famosa “bancada da bala”, presente até hoje em vários setores da política.

Vem de longe discursos populistas com o objetivo claro de atingir camadas mais vulneráveis da população que já estão cansadas de tanta violência.

A política do “bandido bom é bandido morto” ganhou força com ações de um famoso político brasileiro e ex-governador do Estado de São Paulo que, segundo informações de antigos militares paulistas, durante sua gestão, reunia equipes policiais no pátio do famoso batalhão Tobias de Aguiar, a ROTA, para nada menos que entregar envelopes com dinheiro, isso mesmo, dinheiro em espécie, para todos aqueles que, em confronto com a criminalidade, tivessem acabado por ferir de morte os infratores.

Nos últimos anos, principalmente pela ascensão via redes sociais de políticos com viés ideológico “de direita”, o incentivo ao aumento da letalidade policial ganhou força.

O presidente eleito em 2018, Jair Messias Bolsonaro, seguiu sustentando em suas declarações: “nós vamos brigar pelo excludente de ilicitude” (sic), “se alguém disser que quero dar carta branca para o policial militar matar, eu respondo: quero sim!”[2].

No executivo dos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro, principais centros brasileiros com alto índice de criminalidade, não foi diferente.

O candidato paulista mais votado em 2018, João Doria Júnior, pouco antes da eleição, declarou: “se fizer o enfrentamento com a polícia e atirar, a polícia atira, e atira para matar”[3].

No Rio de Janeiro, estado com índice de criminalidade praticamente sem controle, o candidato eleito em 2018, Wilson Witzel, prometeu comprar drones e colocar atiradores de elite (snipers) com o objetivo de abater, isso mesmo, matar à distância todos aqueles que, com fuzis nas mãos, estivessem por colocar vidas em risco ao simplesmente deslocarem-se dessa forma por vias públicas[4].

Em agosto de 2019, em ação do Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE), um atirador de elite matou um homem que fazia refém a população de um ônibus na Ponte Rio-Niterói. Após a ação, o referido governador fez questão de ir, pessoalmente, cumprimentar o policial, descendo do helicóptero do governo com as mãos para cima em ritmo de comemoração pelo abate, como se comemorasse um gol de sua seleção em copa do mundo[5].

Infelizmente a atualidade vem mostrando que a cada dia mais policiais estão evitando a procura dos marginais e seu enfrentamento. Se fazem perseguições cinematográficas no encalço de um bandido pelas ruas do país e conseguem a prisão sem lesão à integridade física ou a patrimônio, quando muito, recebem parabéns atenuado de seus comandantes. Se a perseguição for frustrada por um acidente com a viatura, sairá do bolso do policial o conserto do instrumento de trabalho. Se durante a fuga o bandido ferir algum inocente, aparecerá o “estudioso de gabinete” para sustentar que a perseguição não deveria ter ocorrido, e por aí vão os exemplos de como é difícil ser policial em nosso solo e o maior exemplo de como a política usa o agente policial em seu favor e após o abandona é o famoso Caso Carandiru citado anteriormente.

Sendo este autor ex-oficial da policia militar e advogado que atua na defesa de agentes da segurança pública, muitos acreditam (por puro preconceito) que meu desejo seja conseguir uma maior liberdade na atuação do policial, ou então, lutar para que os responsáveis pela apuração dos fatos que envolvam a morte decorrente da intervenção policial sejam adeptos da violência desmedida ao fazer “vistas grossas” quando da morte de suposto infrator da lei em confronto com o Estado, mas isso não é verdade, sou da posição de que todo evento morte deva ser seria e minuciosamente apurado, pois somente com ética, senso de responsabilidade e justiça advindo daqueles que nos representam como sociedade é que poderemos deixar um futuro melhor para os nossos descendentes. Em contrapartida, dentro do estado policial de exceção que vivemos, precisamos analisar inúmeras questões antes de “condenar”, ainda que de forma moral, os agentes policiais que acabam levando à morte aqueles que, de fato, precisariam ser, na forma da lei, processados e condenados às nossas penas previstas, que possuem vedação constitucional de penas de morte em tempos de paz.

O uso da morte de civis pelas mãos dos órgãos de polícia como forma de estratégia política utilizada em nosso país sempre me fez refletir sobre de onde vieram suas fontes, pensamentos, estudos, etc, até que tive contato com o artigo: AUTORITARISMO LÍQUIDO E AS NOVAS MODALIDADES DE PRÁTICA DE EXCEÇÃO NO SÉCULO XXI[6], do eminente jurista PEDRO ESTEVAM ALVES PINTO SERRANO, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, instituição educacional em que tenho o prazer de estar matriculado em curso de pós-graduação stricto sensu – Mestrado em Direito.

Em seu belíssimo e profundo estudo, Pedro Serrano inicia sustentando o fato de que, de forma diferente de como ocorreu nas ditaduras e Estados totalitários do século XX – suspensão de direitos do povo sob o discurso de enfrentar um inimigo que estava a balançar a soberania do Estado (judeu, ateu, comunista, etc) -, nos dias atuais, se fazem presentes duas formas de Estado:

– Um Estado democrático de direito, presente formalmente na Constituição Federal e acessível apenas a uma parcela da sociedade, aquela mais abastada, visível e com vida, de certa forma, privilegiada;

– Um Estado de exceção – adotado como técnica de governo, mas que não se assume como tal – Estado que denomina como governança permanente de exceção.

Explicita que nos dias atuais esse estado de exceção existente não interrompe a rotina da nossa democracia, convive com ela de forma permanente, porém seu discurso é o mesmo: exterminar o inimigo que possa ameaçar a sobrevivência do estado!

Em meu estudo, da necropolítica como forma de controle da criminalidade, o pensamento de Serrano faz todo o sentido.

O autoritarismo líquido, segundo o jurista, é uma forma de autoritarismo aperfeiçoada, difícil de identificar. Tem uma aparência de respeito às instituições e ao estado de direito, sendo utilizada de forma fragmentada, cirúrgica, caso a caso, com destinatários específicos (não é para todos), uma vez que o objetivo é que não seja identifica como autoritária, ficando sob uma aparência de legalidade.

A ideia de ser assim é poder ter uma eficácia autoritária sem que o governo se declare autoritário, o que seria ruim nos dias atuais para qualquer governante. Como não se tem a figura clara do ditador, ou seja, o autoritarismo não parte de uma figura central, ele muito difícil de ser combatido, ele é fluido, produzido por vários órgãos e agentes públicos.

O mesmo estudo explica que na ditadura nazista os inimigos eram os judeus e os comunistas; na fascista, os inimigos eram a burguesia, o socialista e o comunista; na ditadura franquista, o inimigo era o comunista e o ateu; nas ditaduras militares da américa latina, incluindo o brasil, era o comunista também. Nesses Estados autoritários a supressão de direitos políticos eram claros e ordenados por pessoas específicas e conhecidas (os ditadores), e a sustentação de todos era no sentido de que tal governo teria o único objetivo de salvar o país, consubstanciando-se de forma temporária, mas que na verdade durou anos em todos os países.

Na atualidade, o autoritarismo líquido possui uma diferença crucial entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, seu modus operandi. Na Europa e nos Estados Unidos o agenciamento é feito pelos poderes executivo e legislativo para manter a soberania, e um exemplo disso é a autorização da prática da tortura contra terroristas (muçulmanos, por exemplo), algo criado após o triste episódio dos ataques às torres gêmeas no fatídico dia 11 de setembro de 2001. Na américa latina, quem agencia essa pratica de autoritarismo é o sistema de justiça, sempre apoiado pela mídia para conseguir apoio da sociedade.

Voltando ao estudo da prática em nosso Brasil atual, temos que “o inimigo a ser combatido” se confunde com a figura mítica do “bandido”, agente da violência, que, por conta da governança permanente de exceção voltada a pessoas específicas, acaba por atuar fortemente contra parcela menos favorecida da sociedade – o pobre, morador da periferia – que, por conta de sua própria forma de existência, já sofre dia após dia com a inegável aporofobia[7].

Psicologicamente também, ainda que sem perceber claramente o fenômeno, a sociedade, que se faz fruto de uma união por referências de igualdade pela cultura, língua, geografia de onde reside, condição financeira, posição política, orientação sexual, etc, acaba por rejeitar os “desiguais”, enxergando-os como inimigos, chegando ao limite de considerar que tais “diferentes” são pessoas desprovidas da condição humana, ou seja, uma parcela da sociedade que pode e deve ser extirpada.

Quando falamos em “Necropolítica”, palavra criada pelo pensador camaronês Achille Mbembe, que dá nome à prática deliberada do Estado de causar a morte de pessoas envolvidas com o crime como forma de controle social, não podemos esquecer de que boa parte da mídia, que, com seus programas sensacionalistas divulgando os mais horripilantes crimes, cria na mente da população a ideia de que todo criminoso é incorrigível, tendo suas condutas cessadas somente com a morte.

Da mesma forma, o povo aterrorizado também só sente a “sensação de segurança” quando o sistema de justiça prende, ainda que de forma precária via de prisões provisórias, no profundo processo penal de exceção existente em nosso país, cuja estatística mostra que a maioria da população carcerária pendente de julgamento, não cometeu crime violento.

Por dentro do Caso Carandiru

Para analisarmos a questão política do caso, que ao meu ver é hipótese especifica de autoritarismo líquido e necropolítica, imperioso conhecer o artigo: CARANDIRU – A JUSTIÇA, A POLÍTICA E A VERDADE INCONVENIENTE[8], escrito em 2 de outubro de 2017, de autoria de Antonio Fernando Pinheiro Pedro, um dos primeiros advogados criminalistas a atuar no processo, em 1993.

Em seu artigo, que possui base prática e de realidade, eis que participou ativamente de boa parte da instrução da apuração das mortes, cumpre-nos tecer comentários acerca do efetivo problema do malfadado caso criminal: a política por trás do trabalho policial.

Vejamos parte do informado por Pinheiro Pedro:

 (…)

Trabalhei nesse caso, na fase em que foi submetido à Justiça Militar – e tenho responsabilidade na sua transferência para a justiça comum.

Como especialista em direito penal militar, defendi, como credenciado da Caixa Beneficente da Polícia Militar do Estado de São Paulo, entre 1985 e 1995, quase dois mil policiais militares, em quinhentos julgamentos, na Justiça Militar do Estado e, também, na justiça comum, incluso algumas dezenas de júris.

Em 1993 fomos chamados, eu e meus colegas de CBPM, a defender os policiais submetidos ao inquérito policial-militar que apurou o caso da Casa de Detenção. A mim, competiu a defesa de mais de duas dezenas de policiais do 1º e 2º batalhão de choque da PM.

Pessoalmente, eu me encontrava em uma situação complexa, pois era , também, membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP – então extremamente engajada na apuração dos fatos.

Após consultar o presidente da Comissão, me declarei impedido de atuar nos assuntos relativos ao caso Carandiru, no bojo das atividades da CDH-OAB/SP. Assim, como expectador engajado, tudo vi – e nada pude fazer, no âmbito da OAB, para impedir o “circo” que estava sendo armado por entidades de direitos humanos, militantes de esquerda, parlamentares, advogados, promotores de justiça, procuradores da república, governo federal e o próprio governo estadual, durante o inquérito e posterior processo penal militar relativo ao caso.

Atuei, no entanto, com firmeza, até a decisão da Justiça Militar de transferir o caso para a justiça comum – acatando tese por mim defendida em plenário do Conselho Especial de Justiça Militar.

Pressão, “despolitização” e transição

Dou meu testemunho: tive que enfrentar momentos de tensão, quando de forma solitária, requeri, como defensor, a oitiva do Governador do Estado, Fleury, e do Secretário de Segurança, Pedro Franco de Campos, cujos depoimentos, pasmem, não haviam sido requeridos pelo Ministério Público e nem pelo juízo auditor da justiça militar.

Sofri pressão de todos os lados. Com a promoção, escrita a caneta nos autos, solicitando a providência, eu havia quebrado um “pacto tácito” de blindagem das autoridades civis envolvidas, com o qual estavam acordes operadores no processo e até mesmo entidades de direitos humanos que constantemente vistoriavam os autos.

O pacto visava “despolitizar” o processo. Despolitizar, porém, em termos bíblicos, pois todos – políticos, juristas e instituições de Estado – ao omitirem deliberadamente a participação civil no íter decisório que resultou nas 111 mortes, agiam como que em conluio para transformar a Policia Militar no único e grande “bode na sala” sobre o qual expiariam suas culpas…

Apesar das ponderações, insisti nas oitivas. Fleury e Pedro Franco foram ouvidos, em circunstâncias “kafquianas” – como é fácil presumir da leitura das atas e certidões nos autos do processo. Seus depoimentos, no entanto, deixaram claro que a decisão de invadir o pavilhão onde se desenvolvia a rebelião não foi adotada sem causa e sem envolvimento das autoridades presentes ao local.

Então, o Conselho Especial de Justiça Militar, em sessão histórica, decidiu pela remessa dos autos à justiça comum, suscitando conflito negativo de competência – antes da propositura e entrada em vigor da famosa Lei Hélio Bicudo (que fixava a competência do júri para homicídios envolvendo policiais militares e civis).

O motivo do Conselho Especial de Justiça Militar era simples: a decisão pela invasão não partiu dos réus e, sim, das autoridades civis envolvidas e não denunciadas. Nesse caso, a apuração do envolvimento teria que envolver o até então já processado e outras diligências que refugiam à competência da justiça militar, devendo o caso seguir para a justiça comum.

Era tudo o que a classe política paulista não queria. E pelo visto o judiciário comum também, pois a falha apontada pela justiça militar jamais foi corrigida.

Essa falha – não inclusão das autoridades civis envolvidas, somada à ausência de provas essenciais – como a confrontação balística, permaneceram nos autos. Assim, é de se concluir que o processo, de fato, já nascia morto…

Encaminhados os autos para a justiça comum, tratei de tirar o meu escritório do caso – o que não impediu de continuar acompanhando, de fora, com atenção, o desenrolar dos fatos.

Desde o início a política substituiu a justiça

Poucos hoje se lembram mas… as circunstâncias do caso foram, no mínimo, sórdidas, em vários aspectos, vitimando policiais e detentos.

Uma briga de presos por conta de atrito de gangues de traficantes e uma disputa inusitada pelos favores sexuais de um tal de “Barba” foi o estopim para um tumulto sangrento que já estava produzindo mortos antes da invasão se processar.

Era véspera das eleições municipais. A disputa estava acirrada, sendo que o candidato preferido do governador se encontrava em situação eleitoral delicada, razão pela qual governo e autoridades civis hesitaram em autorizar a repressão durante o dia e… ao depois, de forma atabalhoada, por temor do conflito se estender no dia das eleições, resolveram ordenar a invasão no final da tarde, após as 18 horas. Produziram um enfrentamento sangrento em final de expediente…

A contagem de votos, no dia seguinte, foi simultânea à “contagem” de mortos do conflito (cujos números, sabidos oficialmente poucas horas depois dos fatos). Os números foram sendo divulgados a conta-gotas, confundindo cidadãos, familiares, mídia e o próprio governo). Revelada então, na sua inteireza, toda a tragédia, governador e secretário se recolheram ao famoso “vamos apurar os excessos” e… a polícia militar , executora de uma ordem que ninguém assumiu ter dado, recebeu toda a carga da responsabilidade institucional.

Assim, todos os politicamente envolvidos na sucessão de episódios, estão até hoje manchados pelo sangue da tragédia. Os fantasmas assombram o horizonte de suas trajetórias.

Há outro aspecto comparativo de importância histórica, e politicamente bastante inconveniente.

Seis anos antes do caso da Casa de Detenção, a Penitenciária do Estado havia sofrido rebelião semelhante, circunstancialmente mais complexa. A repressão ocorreu de forma igualmente sangrenta, resultando em 46 mortos.

Ninguém menciona o caso, por um motivo simples: o governador do estado (Orestes Quercia), na mesma noite, foi à mídia e declarou de viva voz assumir ter dado a ordem face à gravidade da situação e, portanto, transferiu para sua pessoa a responsabilidade política pelo fato.

A assunção política da decisão – corajosa e objetiva – encerrou a questão no aspecto jurídico – reduzindo o fato às apurações residuais dos excessos.

No caso do Carandiru, porém, tudo ocorreu em plena vigência da “República dos Promotores”.

O governador era promotor de justiça, o secretário da segurança, promotor de justiça, a comissão especial dos governos estadual e federal, encarregada da apuração dos fatos, formada também por promotores de justiça (alguns aposentados) e os inquéritos, acompanhados necessariamente por promotores de justiça.

Com excesso de promotores de justiça, o fato é que NINGUÉM assumiu a ordem dada, e também ninguém se preocupou em sabê-lo, não existindo um núcleo político da decisão que politizasse o fato e, portanto, desjudicializasse a questão.

O Ministério Público é um organismo de Estado. Não teve culpa de em certo momento ter tantos representantes no governo… Assim sendo, tornou-se vítima das circunstâncias e, com isso, reconhecidamente se perdeu nas filigranas dos processos políticos, incorrendo nos erros que agora justificaram a anulação das condenações.

A judicialização, da forma como se deu, foi fruto da omissão institucional.

Portanto, um ato político.

A política, assim, foi pivô do conflito, fator do desgaste, mote da acusação e “rainha das provas” na condenação falha dos policiais militares.

 (…)

Analisando a história narrada pelo causídico, podemos notar claramente que a invasão do Carandiru foi, no Estado de São Paulo, o maior exemplo de autoritarismo líquido e de necropolítica, uma vez que, por parte dos governantes da época, o ato de autorizar a entrada de homens da ROTA – a mais mortífera força policial militar da época – com armas letais dentro de um presidio como o Carandiru, deveria, no mínimo, ter enquadramento em homicídio doloso por dolo eventual.

Interessante e correto pensamento de Pedro Serrano no artigo que aqui analisamos diz respeito ao autoritarismo líquido nos países em desenvolvimento, como o Brasil, ser efetivado não pelos poderes executivo e legislativo, mas pelo sistema de justiça. No Caso Carandiru, entendo ter ocorrido um misto nessa prática, parte dessa necropolítica foi realizada pelo executivo (governador do Estado via de sua secretaria de segurança – com a PM na ação e a polícia científica nas perícias) e outra parte pelo poder judiciário, que, desde o episódio, força alguma fez para que o processo tivesse um desfecho em tempo razoável.

Talvez o maior exemplo de lentidão (inércia) da investigação, com o objetivo cristalino de dificultar o julgamento seja a perícia de balística – imprescindível para a individualização das condutas dos agentes – que consistia no exame de nada menos que 392 armas em confronto com cada um dos 535 projéteis que teriam sido apreendidos nos corpos dos detentos. Algo inexequível na época para o Instituto de Criminalística paulista, seu chefe, oficiado para a realização dos referidos exames, chegou a declarar que com os recursos humanos, materiais e tecnológicos que dispunha, levariam pelo menos setenta anos para a conclusão dos trabalhos, não cumprindo aquele órgão a referida determinação judicial até os dias atuais, trinta anos após os fatos.

A pergunta que fica é: será que com apoio de outros institutos de criminalística do país em hipótese de apoio/cooperação, algo que vimos nos maiores acidentes aéreos brasileiros, onde era preciso, em poucos dias, identificar centenas de vítimas fatais carbonizadas, teríamos, em tempo razoável – até vinte anos, que fosse, prazo máximo previsto pela nossa lei para a apuração e julgamento do homicídio qualificado, ao menos a confrontação balística para que fosse dado a Cesar o que é de Cesar?

Evidente que não havia qualquer interesse no andamento escorreito desse processo, que acabou por ter seu trânsito somente no ano de 2022, após, nova formação da velha “República dos Promotores” citada por Pinheiro Pedro em seu artigo/história, resolver, também “esquecendo” de seus antigos pares de Ministério Público, fazer estourar a corda pelo lado mais fraco, dos policiais militares, que nada mais foram que os braços armados daquele cérebro político ardiloso voltado a uma política criminal voltada ao justiçamento.

Conclusão

Passados trinta anos desse episódio que marcou profunda e negativamente a política estatal paulista voltada ao sistema carcerário, o evento ainda está longe da efetivação da verdadeira justiça.

Os políticos responsáveis pelo mando da ação nunca sentaram no banco dos réus.

Perícia séria jamais foi realizada, eis que, até o momento, sequer se sabe quem feriu mortalmente quem, apenas sabemos que o Estado feriu, “de morte”, uma das regras mais basilares e imprescindíveis do processo penal, a individualização da conduta, fazendo com que cada um dos 74 policiais militares réus fosse condenado pela maciça maioria das mortes[9], como se cada vítima tivesse, dezenas de vidas.

Os jurados que condenaram os réus jamais viram suas decisões serem efetivamente cumpridas.

Os magistrados responsáveis pelo desenrolar do feito nos tribunais seguem a passos lentos.

Os réus, todos com avançada idade e muitos com problemas de saúde, seguem, dia após dia, lutando contra o medo de serem encarcerados após o trânsito em julgado de um processo que só existiu contra eles por duas razões: serem militares e, portanto, obrigados a cumprirem ordens, ainda que ilegais[10]; e, estarem escalados para o serviço naquele fatídico dia.

A nova geração do Ministério Público paulista segue na tentativa de mostrar-se fiel à lei e aos direitos humanos, divulgando em suas páginas digitais suas “vitórias” no caso, no mesmo ideal lançado por Pinheiro Pedro em sua narrativa, ainda preservando os antigos colegas de instituição e despolitizando o evento.

O autoritarismo líquido, que faz da necropolítica uma ação de Estado para combater o crime e o processo penal de exceção continuam, a todo vapor.

Os organismos de direitos humanos que buscam a responsabilização dos responsáveis pelo evento seguem sem respostas e a facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC), sustentada por alguns ter sido criada em represália ao episódio prisional de 2 de outubro de 1992, segue cada vez maior, mais perigosa e cada vez menos controlada pelo Estado.

Referências

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais.São Paulo: Malheiros Editores, 2008.

DWORKIN, Ronald. O império do direito. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

FERRAJOLI, Luigi. Poderes Selvagens: a crise da democracia italiana. São Paulo: Saraiva, 2014.

HART, Herbert. L. A. O conceito de direito. 5ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007.

SERRANO, Pedro Estevam Alves Pinto. Encarceramento em massa: ineficaz, injusto e antidemocrático. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/encarceramento-em-massa-ineficaz-injusto-e-antidemocratico/. Acesso em 20 de agosto de 2022.

NOTAS:

[1] https://exame.abril.com.br/brasil/carandiru-justica-condena-25-pms-a-624-anos-de-prisao/

[2] https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2017/12/14/bolsonaro-diz-que-quer-dar-carta-branca-para-pm-matar-em-servico.htm

[3] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/a-partir-de-janeiro-policia-vai-atirar-para-matar-afirma-joao-doria.shtml

[4] https://oglobo.globo.com/rio/witzel-flavio-bolsonaro-vao-israel-comprar-drone-que-faz-disparos-23207611

[5]https://www.folhavitoria.com.br/geral/noticia/08/2019/foi-um-trabalho-de-excelencia-diz-witzel-sobre-acao-de-agentes

[6]http://revistathemis.tjce.jus.br/index.php/THEMIS/article/download/769/pdf)

[7] De origem grega, á-poros (pobres) e fobos (medo), se refere ao medo e à rejeição aos pobres.

[8] Disponível em: https://www.ambientelegal.com.br/carandiru-a-justica-a-politica-e-a-verdade-inconveniente/

[9] O Ministério Público requereu a absolvição dos PMs em relação às vítimas fatais feridas por arma branca, entendendo pela falta de provas da autoria pelo fato de que detentos rebelados em rixa também estavam na posse dessas armas. Dessa forma, os PMs não foram responsabilizados pela totalidade dos homicídios (cento e onze).

[10]  João Roth e Iremar Aparecido da Silva Vasques fazem uma análise da obediência hierárquica no Código Penal Militar. Disponível em: https://revista.mpm.mp.br/artigo/artigos-ineditos-ordem-ilegal-deve-ser-cumprida-a-obediencia-hierarquica-do-militar/

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